Jussara Lucena, escritora

Textos

Mais uma chance

Henry praticamente não dormira à noite. O telefone recebido logo ao anoitecer o havia deixado feliz e ao mesmo tempo preocupado. Não fosse o frio e a neve lá fora, teria trabalhado durante a noite. Pulou cedo da cama, precisava correr contra o tempo. Seria difícil encontrar alguma loja aberta na véspera de Natal. Talvez algum dos vizinhos pudesse ajudar.
A neve havia parado e a previsão do tempo indicava um dia de sol. Com cuidado poderia instalar algumas das luzes de Natal. Isto se as velhas lâmpadas incandescentes ainda funcionassem. Deveriam estar em algum lugar no sótão. Seriam diferentes das modernas lâmpadas de LED dos vizinhos, porém trariam lembranças de dias mais felizes que dividira com a família.
Há doze anos, um pouco antes do Natal, o acidente com o trailer da família levou sua esposa e sua filha. O filho, que estava com ele na cabine da pick-up sobreviveu, porém sempre culpou Henry pela perda das mulheres da família.
Na viagem, o filho insistia com o pai que parassem para descansar, porém Henry insistiu em continuar. Faltavam só cem milhas para chegar no parque onde passariam as férias. É certo que foi um veículo quem invadiu a pista contrária e colidiu com eles, porém o filho entendia que se o pai tivesse atendido o seu pedido, tudo poderia ter sido diferente. Bob era muito ligado ao pai, porém saiu de casa logo que se recuperou dos ferimentos, passou a evitar as ligações do pai, nunca mais voltou para a casa.
A casa, por sinal, só lhe trazia lembranças do passado, dos momentos felizes que viveu ao lado deles. Agora, lembrar disso o fazia triste. Talvez ele fosse o mais infeliz e ranzinza daqueles que habitam as vinte casas da vila que parecia esquecida entre as montanhas. O inverno, a neve e a solidão funcionavam como uma droga que o matavam em doses homeopáticas, ano após ano. Sobreviveu com a esperança de que algum dia o filho perdoasse e cruzasse o velho portão da vila.
Henry achava que a noite sem sono lhe havia trazido de volta o bruxismo. Suas mandíbulas doíam, seu braço e pescoço também. Não podia pensar na dor, tinha muito por fazer.
Teve que fazer alguns encurtamentos na fiação que suportava as lâmpadas, muitas estavam queimadas, não encontraria outras para reposição, mas as que restaram cobririam quase a totalidade do contorno do telhado. O menino talvez gostasse do estilo retrô dos enfeites. Imaginar como seria o rosto do neto lhe trouxe um sorriso ao rosto.
Quando o filho ligou e disse que o visitaria na noite de Natal, seu coração disparou. Assim que o filho noticiou a existência do menino de oito anos, faltou-lhe ar aos pulmões e a dor tomou conta do peito por alguns instantes. Depois que se recuperou, vieram as tonturas. Isto se repetiu quando subiu ao telhado, pela manhã.
Estava fora de forma, só isso. O médico lhe recomendara tomar alguns comprimidos para a redução da taxa de colesterol. Chegou a tomar alguns, depois os esqueceu na gaveta, juntos com as aspirinas. Não fazia muita diferença viver muito ou pouco, já havia perdido os motivos que o faziam acordar e viver cada dia.
Dependendo do que acontecesse à noite, talvez valesse a pena voltar lá e fazer uma nova consulta. Manter os braços esticados por algum tempo, agora lhe causavam uma certa dormência no braço esquerdo.
Ele precisava de algo para a ceia. Foi até a casa do velho Sam, no fim da rua. Ele tinha mania de estocar comida em casa. Com certeza teria um pernil ou um peru sobrando. Cobraria um pouco mais caro, mas o sovina lhe venderia algo. Foi o que aconteceu.
Temperou tudo e colocou para assar. O cheiro lhe causou náuseas. Talvez fosse a falta do café da manhã. Apenas tomou uma xícara de chá. Foi mais rápido, pois corria contra o tempo.
Depois de limpar a casa, se deu conta de que não tinha presentes, nem uma árvore. Subiu novamente ao sótão. Precisou parar na metade da escada, por nova falta de ar. Respirou fundo e completou o trajeto.
Seu filho Bob não se aborreceria se ele presenteasse o neto com o seu bastão de basebol. Ainda tinha viva na memória a lembrança do filho segurando o bastão enquanto ele arremessava as bolas. Bob se tornou um dos melhores jogadores do colégio.
A velha árvore não existia mais. Encontrou apenas o pequeno presépio empoeirado. Representaria bem o verdadeiro Espírito do Natal, que há muito não ocupava o coração de Henry.
Faltava pouco, a comida, embora não farta, já estava pronta e a mesa arrumada. Faltava pouco para a chegada do filho e sua família. Lembrou que nem sabia o nome da nora. Isto o fez recordar da mulher e da filha. Tirou de uma das gavetas do armário um porta-retratos. O limpou e o colocou sobre a lareira, que já estava acesa e já aquecia a casa.
Correu para o banho. Ainda se enxugava quando sentiu o suor frio tomar conta do corpo. A dor no peito voltara e a pressão parecia irradiar até o braço.
A roupa escolhida cheirava um pouco a mofo, mas era o que de mais limpo possuía. Eles entenderiam. Numa próxima visita tudo estaria mais organizado.
Sentou-se no sofá da sala, em frente a lareira e olhou fixamente para o porta-retratos. Elas eram lindas. Bob, com seu porte atlético já parecia tão forte quanto o pai.
Sentiu sede. Tentou levantar-se, as pernas não respondiam, pareciam fracas. Vai passar – pensou.
Pegou o rádio, que ficava na mesa ao lado e sintonizou uma estação com músicas natalinas. O neto gostaria. Começou a cantarolar, quase sussurrando uma das canções. O ar voltou a lhe faltar.
Achou melhor pôr a comida na mesa. Naquele ritmo não lhe sobraria energia até a chegada dos visitantes.
Votou ao sofá. Nunca o estralar da lenha no fogo havia lhe soado tão bem. Talvez o fogo estivesse um pouco alto. Tirou o casaco, o suor frio havia aumentado. O braço, antes adormecido, agora estava rígido.
Um carro estacionou em frente. Não, não era na casa em frente. Ouviu passos na escada de acesso e o riso de uma criança, parecendo espantada com as luzes. Tentou sorrir também, porém a dor aumentava.
Pensou em gritar, não conseguiu. Na porta, alguém bateu. Não tinha forças para caminhar.
Lembrou das aspirinas no banheiro. Precisava colocar uma delas debaixo da língua.
Não teve tempo, o coração desistiu de bater. Houve um breve momento em que pode olhar no rosto do neto, logo que o filho decidiu abrir a porta e entrar.

Texto que fez parte da Antologia Natal sem luz- vol. 5, organizado por Rô Mierling da Illuminare.

Adnelson Campos
02/04/2019

 

 

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